Omnivore em Paris

Março 2012

Omnivore

Como já tinha antecipado, meus últimos dias dessa temporada em Paris passei no auditório da Maison de la Mutualité, acompanhando o festival Omnivore. Nos últimos anos, o festival vinha acontecendo na Normandia. Em 2012, mudou-se pra capital e se multiplicou: ao longo do ano, ocorrerão edições em diversas cidades. Sob o lema “100% jeune cuisine”, os organizadores buscam reunir no palco novos talentos que brotam nas cozinhas do mundo – além, claro, de alguns velhos conhecidos.

Não pude acompanhar todas as aulas; precisei escolher – inclusive porque aconteciam, simultaneamente, em três auditórios diferentes. Perdi vários workshops e debates interessantes, mas deu pra ver muita coisa boa. Faço aqui um balanço do que registrei ao longo dos três dias de festival. Senta que lá vem história.

A dupla Isaac McHale e James Lowe – os “Young Turks” –, cujas aparições em restaurantes pop-up têm dado o que falar em Londres, levou ao palco um pouco de sua cozinha moderna de acento britânico. Entre outras coisas, mostraram seu steak tartar, feito com carne maturada por 5 semanas e emulsão de ostras, e uma sobremesa à base de sorvete de malte tostado, uma dose generosa de The Kernel e crocante de café – essa eu provei e era uma verdadeira delícia.

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Eneko Atxa revelou um pouco da cozinha vanguardista do restaurante basco Azurmendi, em pratos como a emulsão de tomates com azeite, coberta por terra comestível (feita de beterraba, cebola, amêndoas e manteiga), onde o chef esconde batatinhas assadas, no que ele vê como um convite a um passeio em sua horta. Ou na entrada que é aparentemente uma gema normal, mas, em verdade, trata-se de uma gema fria esvaziada e preenchida em seguida com creme de trufas através de uma seringa.

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Me surpreendeu a serenidade, a franqueza e a simpatia de Jean-François Piège, de quem tinha a impressão de ser um chef um tanto mais sisudo. O francês confessou que, desde que deixou o Crillon, vive uma fase em que não se preocupa em ser o mais forte, o melhor, mas apenas em levar prazer às pessoas. Mostrou no palco do Omnivore que o caminho pra isso, muitas vezes, pode passar por escolhas absolutamente simples, ainda que profundamente inteligentes. Foi o que provou com uma receita de coquilles Saint-Jacques. Um belo prato de cerâmica, em cujo interior são acomodadas vieiras grelhadas (e finalizadas no forno), tem suas bordas untadas com uma espécie de maionese de alho-poró, onde o chef cola ervas e brotos, desenhando um jardim, em que entram, ainda, inusitados chips obtidos a partir de nada mais do que a própria carne das vieiras, desfeita com as mãos, espalhada num silpat e comprimida com outro silpat. Deixa-se coagular e daquela fina camada de carne são cortados pedaços finíssimos que, uma vez fritos, viram crocantes de vieiras. Simples assim. E genial.

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Piège apresentou, ainda, sua versão das clássicas Îles Flottantes. Estão presentes todos os elementos da receita tradicional, mas sob nova roupagem. As claras batidas preenchem uma forma em aro, são recheadas com creme inglês e levadas a assar. Ao final, são cobertas com uma fina telha de caramelo. Quando rompidas, liberam dramaticamente o creme de baunilha.

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Jordi Roca, o mágico pâtissier do Celler de Can Roca, como sempre, lotou um auditório e ainda deixou fila na porta. Passeou por várias das linhas de trabalho de sua confeitaria de vanguarda. Algumas delas já apresentadas no Brasil, quando participou do congresso Mesa Tendências, como é o caso das sobremesas inspiradas em perfumes (em que usa a técnica de destilação) e dos caramelos feitos com isomalte, soprados e moldados no formato de frutas e legumes. Mostrou também seus “Cromatismos”, sobremesas em que explora composições de tons de uma determinada escala cromática.

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Josean Alija, à frente do Nerua, em Bilbao, falou com poesia do desafio que é a mesa em branco, de onde surge a experiência que há de ser vivida de forma distinta e com total liberdade por cada pessoa que se senta em seu restaurante. Trouxe ao público algumas de suas criações, como o foie gras vegetal, em que usa o abacate no lugar do fígado gordo de ganso (soube que nosso chef Raphael Despirite, a um oceano de distância, vem trabalhando a mesma ideia no seu Marcel, em São Paulo). A fruta ganha textura que permite derreter na boca e é servida em perfumado caldo obtido das folhas do abacateiro. Alija executou, ainda, sua lúdica versão do bacalhau ao pil pil, em que uma cebola faz as vezes do peixe, após ser cozida num caldo de algas que têm nuances do sabor do bacalhau e, em segu

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William Ledeuil, do Ze Kitchen Galerie (onde tive uma das minhas melhores refeições nessa viagem, como contarei aqui em breve), provou que, além de grande cozinheiro, é um craque nas sobremesas – coisa rara. Falou de sua bela parceria com o agrumiculteur Michel Baches. Contou de como se apaixonou pelo trabalho desse agricultor especializado em frutas cítricas, que desenvolve centenas de variedades, algumas pouco comuns. Uma das sobremesas apresentadas por Ledeuil era uma inspiradora aquarela composta por frutas cítricas confitadas (kinkans, clementinas, um tipo especial de limão, uma outra que era um híbrido resultante de cruzamento entre limão e kinkan). Entre mais algumas sobremesas apresentadas, Ledeuil emudeceu a plateia diante de outra aquarela, bem diferente: dessa vez, chocolate, gianduia, doce de leite, caramelo com pimenta do Nepal e pomelo. Tudo isso coroado por uma telha de gergelim negro.

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Vimos a cozinha sutil e delicada de Anne-Sophie Pic, que falou sobre seu estado de espírito atual, sob influência de recente viagem ao Japão, o que ficou claro na receita executada no palco, em que utilizou uma redução obtida a partir de um bouillon de alho-poró e manteiga com infusão de Matcha, além de anchovas marinadas e caviar da Aquitânia. A chef contou, ainda, sobre o restaurante que vai abrir em junho em Paris, batizado de “La Dame de Pic”.

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A aula de Quique Dacosta, um dos grandes chefs da atualidade, proprietário do restaurante homônimo em Dénia, foi um tanto corrida. Muitos vídeos, pouca execução ao vivo. Assim como Alija, Quique revelou sua versão particular do bacalhau ao pil pil, em que usa gordura de jamón emulsionada e moldada fazendo as vezes das cocochas de bacalhau. Em vídeo, mostrou, entre outros, o inspirado prato “Qué fue primero?”, em que, no meio de ovos crus, acomoda um falso ovo, que esconde uma gema mole envolta em gelatina de caldo de galinha.

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Único representante brasileiro, Felipe Bronze abriu sua aula com uma bela versão do caju amigo: cajus confitados (com baunilha, cumaru, zestes de limão e laranja) e um sorbet feito do líquido do confit e cachaça. Foi logo dando seu recado: “o Brasil não é só caipirinha!”. E levou ao palco, entre outros pratos, seu açaí com banana e sua versão de filhote “na brasa” (feito em fumaça de priprioca). Deu um nó no apresentador do evento, Sébastien Demorand, falando de um Brasil que o crítico – assim como a plateia – , provavelmente, pouco conhece: taperebá, bacuri, alfavaca, pimenta biquinho, priprioca e filhote.

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Perdi parte da aula de Ronny Emborg, do AOC, em Copenhague, mas o pouco que vi foi, pra mim, uma grata surpresa. Eu, que não estava familiarizada com seu trabalho, fiquei muito impressionada com a extrema beleza de seus pratos, que traduzem uma relação de profundidade com o terroir, indo além do discurso, muitas vezes rasante, repetido à exaustão mundo afora. É o que se vê, por exemplo, no tronco moldado em sorvete de leite de bétula sobre terra de malte.

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O último dia de festival foi encerrado com um auditório completamente lotado pra receber a simplicidade e a simpatia de Michel Troisgros, que evocou, entre suas referências, a generosidade italiana que lhe veio pelas mãos da avó, falou sobre a redução e a calma que busca em seus pratos, e alertou quanto ao perigo de cair na armadilha de permitir-se crer que a perfeição é possível. Entre os pratos executados, o “Rouget façon Mondrian”, em que, numa bela construção de cores, um molde de três manteigas se adapta ao peixe. A finalização com maçarico permite que derretam levemente, ajustando-se perfeitamente à carne.

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E pra quem conseguiu chegar ao final desse post deixo uma boa notícia: o Rio de Janeiro, provavelmente, sediará uma edição do Omnivore no segundo semestre desse ano. O realizador do evento, Luc Dubanchet, deve vir ao Brasil em abril e conta com o engajamento do chef Felipe Bronze, que teve da Prefeitura um aceno quanto a um possível incentivo pra que o festival se concretize aqui. Como boa carioca, estou cruzando os dedos.

 

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