Costumeiramente sou alvo de críticas quando comento que, de uns anos pra cá, já não tenho suportado longuíssimos e intricados menus degustação. Aceito e até compreendo as críticas, mas não posso evitar o sentimento que me arrebata ao fim de boa parte destas refeições (ressalvadas algumas honrosas exceções): tantas horas, tantos pratos, tanta solenidade, tanta autorreferência, pra quê? Depurar em busca do essencial me parece premissa importante demais pra ser esquecida.
Meu remédio contra os excessos na cena gastronômica tem sido invariavelmente o mesmo: Minas Gerais. Quando é grande minha fome de simplicidade, quando comer profissionalmente começa a se tornar chato e artificial, é hora de ir a Minas.
Drummond definiu como ninguém essa simplicidade que parece estar no DNA da cozinha mineira:
“Certos espíritos dificilmente admitem que uma coisa simples possa ser bela, e menos ainda que uma coisa bela é, necessariamente, simples, em nada comprometendo a sua simplicidade as operações complexas que foram necessárias para realizá-la. Ignoram que a coisa bela é simples por depuração, e não originariamente; que foi preciso eliminar todo elemento de brilho e sedução formal (coisa espetacular), como todo resíduo sentimental (coisa comovedora), para que somente o essencial permanecesse.”
Passar uns dias na terra do poeta sempre funciona bem como antídoto contra a afetação e a superficialidade reinantes. Volto de fôlego renovado. Na última visita não foi diferente.
No quintal de Dona Serma, famosa doceira na miúda São Bartolomeu, testemunhei verdadeira lição de depuração. Sob o impiedoso bafo do tacho, ela e dona Doquinha se alternam por horas e horas no manejo da pá, até que dezenas de litros de leite se transformem num bocado de doce, cujo ponto é definido unicamente pela precisão dos sentidos daquelas mulheres. Um doce que guarda a beleza do simples, embora sua execução nada tenha de fácil.
De São Bartolomeu, segui viagem pra Belo Horizonte, onde a moderna cozinha do Trindade, um dos meus restaurantes preferidos na capital mineira, me garantiu mais uma vez uma grande refeição, e um prazer em nada menor do que aquele que senti no quintal de dona Serma.
A porção de gyozas com que se iniciou meu almoço (delicada massa e delicioso recheio de galinha caipira e pé de porco) já teria justificado a ida até a casa de Fred Trindade. Pois houve mais: lombinho em perfeita cocção – um oceano de distância dos maltratados e ressecados cortes com que tantas vezes nos deparamos em endereços menos cuidadosos. O acompanhamento, não menos impecável que a carne, era apenas uma pequena marmita de tropeiro de feijão andu, coroado por um ovo – “apenas” aqui não é depreciação, mas enaltecimento. A economia na escolha dos elementos é permissão pra que cada um deles brilhe em sua essência.
Seja nos quintais do interior ou no cosmopolitismo da urbe, venha do olhar de jovens cozinheiros ou das mãos de doceiras septuagenárias, sensibilidade, apuro e profundidade não dependem de CEP ou idade. Podem se manifestar a qualquer tempo e em qualquer lugar.
Doces da Dona Serma – à venda na loja Doces Edu Tijolo, em São Bartolomeu
Restaurante Trindade – Rua Alvarenga Peixoto 388 – Lourdes – Belo Horizonte
http://www.trindadebrasil.com.br/