Acabo de voltar de Lisboa e escrevo estas linhas com as ideias ainda à mesa, sem a habitual preocupação de antes as digerir. Foram oito dias comendo em todo tipo de lugar, mas com dedicação especial a algumas das tascas e tabernas, digamos, de nova geração. As tabernas modernas são lugares que mantêm relativa simplicidade nos pequenos salões, sem renová-los com projetos arquitetônicos pretensiosos ou povoar suas mesas com louças caras e assinadas, mas em cujas cozinhas há cozinheiros capazes de levar refinamento técnico, precisão e eventualmente algum registro autoral ao seio de uma culinária característica deste tipo de estabelecimento: franca e afetiva, pautada por um diálogo genuíno com suas raízes culturais.
Compartilho aqui três destes endereços por onde andei.
Na Taberna do Calhau, a ementa homenageia a cozinha alentejana com frescor e sem ortodoxia. Na panela de sames de bacalhau com xerém, o conforto da comida que abraça. No pica pau de lombelo, nacos de carne contracenavam com a delicada acidez do molho e dos picles de cenoura e couve-flor. Na “Alentejaninha”, cachaço de porco em impecável ponto de cocção sobre aveludado molho que justifica o batismo do prato em alusão à famosa francesinha.
Na Taberna Sal Grosso, compartilhamos bocados que fizeram da noite uma sequência de interjeições. Da raia alhada aos pastéis de bacalhau com açorda de tomate e coentros, dos nacos de barriga de porco defumadas às assombrosas iscas de fígado de pato, foi uma refeição de poucos senões. Teria voltado uma vez mais, não fosse a dificuldade em conseguir mesa sem reserva.
N’O Velho Eurico, antiga tasca lisboeta sob nova direção desde o começo de 2019, a sensação era de estar à casa de um amigo que por sorte fosse também um grande cozinheiro. Na ementa, sente-se alguma influência da Taberna Sal Grosso, onde o chef trabalhou por um ano antes de ali se instalar.
Começamos com estupendos camarões com limão e coentros, ponto exato, sabor intenso – um convite, ou melhor, uma intimação a um mergulho do pão na sobra do molho. Os pastéis de bacalhau se faziam acompanhar de delicioso arroz de feijão. As iscas de fígado de porco com cebolas e batatas me levaram à infância, época em que minha avó as fazia pra agradar o avô, antes de se tornarem inimigos declarados. A sensação de agasalho, aconchego era tamanha que me fez retornar dois dias depois e pedir exatamente o mesmo.
Embora o olhar forasteiro e a experiência de poucos dias não me habilitem a concluir coisa alguma sobre uma cidade que não é a minha, cada um destes lugares por onde andei, em certa medida, reforçou em mim a impressão de que há uma nova geração de cozinheiros trazendo admirável acréscimo à cena gastronômica de Lisboa. O que de certo modo me leva a refletir também sobre o que se passa no meu quintal, por ser este um movimento de que sinto imensa falta no Rio de Janeiro. Não houve como não pensar a respeito disso ao longo destes dias em que comi tão bem a preços acessíveis nas “novas” tabernas.
Compreendo que minha cidade não facilite este tipo de inciativa: altíssimos aluguéis e custos tributários favorecem o aprisionamento de muitos dos nossos jovens talentos em modelos dependentes de investidores milionários, a cujos interesses talvez não convenha um negócio mais modesto. Assim seguimos sem sair da ciranda de projetos arquitetônicos ambiciosos, louças caras, grandes equipes - investimento que nem sempre encontra resposta à altura na cozinha. Mantenho a esperança de que surjam circunstâncias que propiciem um movimento de cozinheiros que ousem desafiar essa lógica e aos poucos redesenhar a cena gastronômica carioca, que anda um tanto enfadonha.
Taberna do Calhau – Largo das Olarias 23 – Lisboa
Taberna Sal Grosso – Calçada do Forte 22 - Lisboa
O Velho Eurico – Largo São Cristóvão 3 - Lisboa