Após me acomodar, não precisei de muito tempo pra perceber que o Belcanto é um restaurante que não deve ter muitos pares em Lisboa. Serviço eficiente, extrema atenção aos detalhes e apuro técnico como talvez não tenha visto em outro endereço nessa minha breve passagem pela cidade.
Optei pelo Menu do Desassossego. Em seis cursos, execução impecável de fio a pavio. No entanto, até por estar diante de uma cozinha de excelência, algumas observações me deixaram bastante intrigada em algumas etapas do percurso e me fizeram sair dali com sentimentos conflitantes. Mas vamos por partes.
Na sequência de amuse-bouches, duo de falsas azeitonas – negra em tempura e verde esferificada (recordação da temporada que o chef passou no El Bulli?) –, dry martini invertido (gin esferificado, mergulhado em suco de azeitona), bombom de foie gras em capa de manteiga de cacau, crocante de bacalhau com grão, e os incontornáveis percebes, aqui, com creme de couve flor e água do mar.
Ótimos pães acompanharam a refeição.
O primeiro prato, intitulado “Rebentação”, reproduzia cena marinha: espuma de água do mar com leite de coco, ladeada por frutos do mar, crus ou pouco cozidos, e areia de biscoito de alga. Confesso que fiquei surpresa. Qualquer semelhança com Heston Blumenthal não me parecia mera coincidência...
Como comentei nesse post aqui, acho muito delicada a questão de estabelecer os limites entre influência, inspiração e cópia nas mesas mundo afora, especialmente, no momento atual, em que a informação viaja em assombrosa velocidade. Muitas vezes, somente o tempo, ao colocar as coisas em perspectiva, tem o poder de revelar a dimensão da influência do trabalho de determinados chefs sobre seus pares, sem que se trate, necessariamente, de intenção de plágio e, sim, da natural evolução de ideias. Mas, voltando ao Menu do Desassossego, em “Rebentação”, a conexão com o famoso prato de Blumenthal (“Sound of the Sea”) me soou muito explícita. Considerando o indiscutível talento de Avillez, não posso negar que me intrigou a explicitude.
A “Cavala de escabeche” me fez emergir do estado de reflexão. A delicadeza do peixe contracenava com saboroso creme em que se acrescenta beterraba à base de escabeche. Pipoquinhas de tempura traziam bem-vinda crocância ao prato.
Na “horta da galinha dos ovos de ouro”, ovo em baixa temperatura, envolto em folha de ouro, acompanhado de gostosa farofa de pão frito com tinta de choco. Senti, uma vez mais, ecos de outras mesas.
Em seguida, “Raia – Jackson Pollock”, uma homenagem a uma tela específica do pintor americano. Usando o dripping, técnica consagrada por Pollock na produção de suas telas, o chef recria as cores da obra que o inspirou, através de “tintas” de alho, cenoura, azeitonas verde e negra e tinta de choco. No centro, o peixe: uma manteiga, bordas crocantes, impecável execução. Os molhos, muito saborosos. Lúdico e delicioso, o prato elogiado dentro e fora de Portugal como símbolo do talento de Avillez pareceu-me, inclusive, uma homenagem original. Não era, como me alertou a jornalista Luciana Bianchi nas redes sociais. Curiosa, fui atrás de saber por que mãos já havia sido feita homenagem semelhante. Pesquisando, cheguei ao “Dripping di Pesce”, homenagem do mestre Gualtiero Marchesi a Jackson Pollock. Inevitável voltar às ponderações que me ocorreram diante de “Rebentação”.
Finalmente, leitão da Bairrada revisitado. Perfeito, o leitão. A pele, um biscoito. A carne, úmida, saborosa. Surge na bem-vinda companhia de coração de alface e delicadíssimo molho de laranja. À parte, chips de batata. Pra mim, o melhor prato do almoço. Por ser uma versão bem-sucedida de um clássico. Pela execução perfeita, o equilíbrio dos sabores. Mas também, e especialmente, por não ter vislumbrado ali pretensão não consumada de genialidade, e, sim, genuína intenção de expressar aquilo que está carimbado no DNA do autor: a cultura de sua terra.
Derradeira etapa do menu, o “pastel de nata em mil-folhas”, boa versão de um ícone, tinha massa crocante, recheio delicado e vinha acompanhado de um gostoso sorvete de canela.
Mas ainda tenho dúvida se não devia, no lugar da sobremesa, ter pedido mais um leitão...
Belcanto – Largo de São Carlos 10 - Lisboa