A pergunta no título deste post é puramente retórica. Na verdade, eu ousaria dizer que não tenho qualquer dúvida quanto à resposta: não, não conhecemos o peixe que comemos no Brasil.
Esse foi o assunto discutido numa mesa redonda sobre pesca, que tive o prazer de mediar ao lado do mestre Carlos Alberto Dória, a convite do Instituto Maniva. O debate aconteceu no último sábado, dentro da programação do Rio Gastronomia, e contou com a participação dos chefs Rafa Costa e Silva, Teresa Corção e Frédéric De Maeyer e dos pescadores Antonio Amaral – da empresa Fish Life –, Jairo e Chico – estes últimos, líderes da comunidade de pesca artesanal de Itaipu, em Niterói. Tivemos ainda, a presença de Mariana do Valle, representante do Slow Fish.
A proposta da mesa redonda surgiu de uma série de conversas que vinham acontecendo há meses, por conta de um encontro promovido em dezembro passado pelo Centro de Cultura Culinária Câmara Cascudo, o C5, ONG da qual eu, Dória, Rafa e Teresa somos membros. Aquele encontro tinha justamente a intenção de melhor entender a cadeia do peixe no Brasil. Os diálogos travados entre nós desde então evidenciam que, quando se trata de saber de onde vem o peixe que comemos, como é pescado e que tratamento recebe até que chegue a nossas mesas, há mais perguntas que respostas.
O curioso é que, seja nos restaurantes, seja em nossas casas, quando optamos por comer peixe, temos a sensação de fazer uma escolha segura. Talvez pela impressão de que se trate de um alimento cuja cadeia seja compreensível, sem grandes mistérios a povoar o caminho percorrido desde sua captura no mar até que alcance nossos pratos. No entanto, quanto mais converso com pescadores e cozinheiros, mais me convenço de que não temos tanta clareza a respeito desse caminho.
O assunto é complexo e envolve uma infinidade de questões espinhosas. Barcos pescando sem licença. Desrespeito aos períodos de defeso e outras proibições legais. Práticas de pesca que agridem o meio-ambiente. Más condições de acondicionamento dos pescados entre a captura e a chegada ao mercado. Grande quantidade de intermediários nesse caminho. Transporte mal feito. Por fim, o que talvez seja o maior desses males, por ser aquele que perpetua todos os outros: o desconhecimento dos cozinheiros e dos consumidores sobre o alimento que servem e consomem.
Só pra ilustrar a dimensão do problema, abordo aqui um exemplo de que falamos no encontro de sábado. Quem, como eu, vive no Rio de Janeiro, sabe como se come cherne nessa cidade. O que talvez muitos não saibam, assim como eu não sabia até um mês atrás, é que a espécie que abunda em nossos mercados, feiras e restaurantes, é o cherne poveiro, cuja pesca foi proibida em 2005 (por um período de dez anos) através da Instrução Normativa MMA nº 37, em razão de ter sido incluído na Lista Vermelha da União Internacional para Conservação da Natureza como criticamente ameaçado de extinção. Nas prateleiras dos mercados e nas cozinhas dos restaurantes cariocas, isso parece ser solenemente ignorado todos os dias. Só na semana passada, a Polícia Federal apreendeu uma carga de mais de 12 toneladas de cherne poveiro no Rio.
Enquanto isso, uma série de espécies abundantes em nossa costa, sem problema de sobrepesca, simplesmente não são oferecidas em mercados e restaurantes. Quando são, não atraem nosso interesse, acostumados que estamos a comer sempre as mesmas coisas.
Se passamos à questão da qualidade do peixe que consumimos, a situação não é mais animadora. Grande parte passa 10, 20, até 30 dias em más condições nos porões dos barcos de pesca e já não chega fresca às nossas mesas. No entanto, entre os cozinheiros e consumidores que recebem esse pescado, são poucos os que conseguem perceber que já não é fresco o alimento que têm em mãos.
Ao subir ao palco do Rio Gastronomia no último sábado, não tínhamos a pretensão de abordar cada uma dessas questões em profundidade. Dispúnhamos de apenas duas horas. Ainda que dispuséssemos de vinte, isso não seria o bastante. A verdade é que a falta de conhecimento sobre o assunto ainda é imensa. A esperança está em acreditar que, a cada oportunidade que tenhamos de debater e refletir, possamos sair um pouco menos ignorantes a respeito do peixe que comemos no Brasil. Se não menos ignorantes, ao menos mais preocupados, o que já é alguma coisa.