Compro quentinhas

Junho 2020

 

Até três meses atrás, eu achava que frequentar feiras de pequenos produtores, aderir a uma assinatura de pão artesanal e fazer coleta seletiva de lixo talvez fossem o bastante pra me levar ao olimpo do consumidor modelo. A pandemia e o isolamento social, que chegaram pra relativizar tudo, me fizeram repensar essas estrelas que eu andava lançando na minha própria caderneta.

 

Além de me fazer lidar com medo, ansiedade e angústia, velhos conhecidos, a quarentena instalou em mim desconfortos inéditos. Passei a me questionar em cada pequena escolha, em cada decisão aparentemente banal. De repente me vi colocando uma lupa sobre as consequências de atos que antes me pareciam menos importantes.

 

A cada compra, eu me perguntava que tipo de comércio eu estaria privilegiando ou preterindo. Por que comprar cenouras orgânicas no site do mercado de rede se posso comprar direto do produtor, que entrega na minha porta duas vezes por semana? Em nome da comodidade de receber no dia seguinte? É motivo suficiente? Por que comprar na chocolataria de grife e não na pequena loja do bairro, que dispõe de menos armas na luta contra o inimigo comum?

 

Essa vem se tornando uma regra intuitiva a me pautar: sempre que possível, privilegiar quem pode menos – claro, desde que isso faça sentido, afinal, nem toda rede é ruim, nem todo artesão é bom. Quem ganha com isso quase sempre sou eu mesma. Alguns dos melhores bocados da minha quarentena chegaram em quentinhas despachadas de cozinhas sem pedigree. O pão pita do Zé, o peito assado do Juan, as tortas da Laila, o pavê do Henrique. Torço toda semana pra que os quindins da Anna e da Letícia voltem logo a circular pela cidade.

 

Do mesmo modo que eu não entrava em qualquer salão de bar ou restaurante de portas abertas pra calçada, também não encomendo comida em pessoas de quem eu não tenha referência alguma. Conhecer a procedência do que se come já era e seguirá sendo fundamental. Só acho que não são necessários - nem suficientes -  um letreiro e um alvará pra chancelar o trabalho de alguém. Há cozinheiros talentosos fazendo coisas maravilhosas na invisibilidade das cozinhas de seus apartamentos. Muitos deles por opção, outros tantos atirados a essa condição por um país desigual que tritura os que não são amigos do rei. É uma gente brava que o Brasil verga, mas não quebra. Uma gente que merece estar contemplada nas minhas escolhas.

 

Entendam bem, essas linhas não são um exercício de autoelogio. A quarentena não operou milagres em mim. Sigo usando aplicativos de entrega mais do que deveria. Ainda compro muita coisa em gigantes do varejo. Não larguei a Coca zero. Em momentos de perda de lucidez, cheguei a comprar pão francês em supermercado. Mas o desconforto ante o consumo irrefletido, o questionamento, a ponderação vieram pra ficar. Asssim como as quentinhas.

 

por: Rosane Rosa em 27-06-2020
Essa reflexão sobre os pequenos produtores, empreendedores, pessoas que têm no seu fazer o olhar para o outro e o desafio diário de sobreviver e viver do seu trabalho, tem me acompanhado nesses já 100 dias de quarentena.Venho pensando e me movimentando na direção de apoia-los através das minhas escolhas de compra.
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