Aproveitei a última passagem por São Paulo pra conhecer o novo endereço do Tordesilhas. Fazia muito tempo que eu não revisitava o restaurante, o que é uma falha imperdoável. Sou fã da chef Mara Salles. Sua relação com o ingrediente brasileiro é de rara profundidade. Num momento em que o verde-amarelo está na moda e acaba se tornando esteio de discursos vazios nas bocas de tantos chefs, é sempre bom voltar a Mara. Uma cozinheira que faz da investigação de nossa cultura culinária um verdadeiro caminho de vida, não um passaporte para a própria celebrização.
Um simples relato prato a prato de meu último jantar em sua casa não dá conta do que acabo de dizer. Mas isso não me impede de contar da beleza que é a seleção intitulada “Comissão de Frente”, uma miscelânea de pequenos bocados, que reúne ótimo pastel de camarão, carne seca na manteiga de garrafa com cebola, queijo de coalho com mel de rapadura e marinada de abobrinha, delicada e saborosa – pra minha surpresa, ao lado de elementos tão mais populares na mesa brasileira, uma simples abobrinha roubou a cena.
Já que comecei, deixem-me contar também do robalo em molho de moqueca, com caruru, acaçá e farofa de dendê, da seção “pratos da chef”, onde a tradição é parâmetro, mas não é amarra. O caruru era especialmente bom. Não me lembro de ter comido melhor fora da Bahia.
Não posso deixar de falar do curau de milho, que ainda não me saiu da memória. Uma aula de delicadeza. É o habitual acompanhamento do galeto assado, mas o garçom fez a gentileza de me trazer um à parte, diante do meu apelo.
Enfim, já que viemos até aqui, é preciso louvar o pudim de tapioca, que é abordado com leveza e equilíbrio. A textura, um veludo. A calda, ponto perfeito, sem doçura excessiva.
Em certa passagem de seu belo livro “Ambiências – Histórias e Receitas do Brasil”, Mara diz que gostaria de fazer comida brasileira como Tom Jobim fazia música. De uma coisa eu não tenho dúvida: a brasilidade que habita as melodias de Jobim tem muito em comum com a chama que move os fogões dessa admirável cozinheira. Particularmente porque também a Mara Salles não interessa um Brasil exótico ou idealizado. Seu mergulho é mais profundo. Em sua cozinha, a bandeira do país não é erguida em vão.
Tordesilhas – Alameda Tietê 489 - Jardins