Quem se dirigir ao Kitanda Brasil esperando encontrar um restaurante convencional corre sério risco de se decepcionar. Desde a arquitetura do lugar até o modo de operar, tudo ali é mais casa, menos restaurante. Não me refiro apenas aos horários de funcionamento restritos, às poucas mesas disponíveis, ao ritmo do serviço, mais lento que o habitual, e aos preços, mais baixos que a média. Refiro-me também ao fato de que é a própria dona, a chef Tanea Romão, que nos recebe e nos guia até o fim da refeição. Contando com a ajuda de uma única auxiliar, divide-se entre cozinha e salão ao longo da noite. Eu diria que o Kitanda se confunde com Tanea. Sem ela, a experiência não existe. Se isso é bom ou mau, depende do olhar do visitante.
Meu desejo de conhecer seu trabalho vem desde os tempos em que ela ainda vivia em Gonçalves – onde funcionou o Kitanda Brasil até 2012, quando, então, mudou-se pra Tiradentes. Suas pesquisas, seu interesse por nossas tradições culinárias, sua curiosidade por ingredientes pouco usuais (que fica evidente em sua horta de plantas não convencionais), sua busca por uma cozinha calcada na memória, tudo isso alimentava em mim esse desejo. Depois de conhecê-la, posso dizer que, de fato, todas essas coisas estão ali presentes e talvez tenham me marcado até mais do que propriamente a comida que me foi servida.
Diante da simplicidade de pratos de ágata e copos americanos, ao som de boa música, e acompanhados do perfume da comida que era preparada na cozinha aberta a poucos passos de nós, percorremos um menu de oito cursos (a mais curta das opções disponíveis). Às vezes, o intervalo entre um e outro se alongava demais, perdia-se o ritmo. Mas isso era compensado pela abordagem da chef ao servir e explicar cada prato. Nada da chatice ou do tecnicismo que dão o tom da descrição de pratos nos restaurantes modernos, mas apenas o empenho em contar a história por trás de cada receita, falar da carga afetiva que cada uma delas encerra. Ao final de sua fala, não me sentia entediada, mas enriquecida.
Começamos com o couvert, que trazia deliciosos nacos de massa de pastel, acompanhados de manteigas aromatizadas com geleias, que me pareceram, todas, doces demais.
No primeiro ato do percurso, a estrela era o lambari da horta (linda folha aveludada, cuja textura lhe vale também o nome de orelha de coelho) empanado em fubá. O creme de cupuaçu que acompanhava me pareceu fora de contexto. No copo, suco de limão com capim santo.
O cuscuz de frango com farinha de milho que veio em seguida era de pedir bis. Eu abriria mão de alguns dos bocados do jantar por mais um tanto dele.
Era gostoso o bolinho de feijão fradinho, espécie de acarajé mineiro, mas o melhor era a memória decantada ao servi-lo – segundo Tanea, o bolinho, muito tradicional na região, era vendido nas ruas em tabuleiros. É preciso falar ainda do molho de pimenta porreta que o acompanhava, feito com uma coleção de pimentas de quinze anos, compradas pela cozinheira Brasil afora.
Outro dos meus favoritos, a polenta “de rapa” homenageava a tradição do interior, onde se aproveita a rapa do angu feito na véspera, adicionando-se leite pra soltá-la no dia seguinte. Ali, preparada com fubá mimoso e requeijão de corte e coroada com serralha refogada. Uma delicadeza.
O ótimo patê de fígado contracenava com jiló em calda de hibisco, numa alusão ao clássico do Mercado Central de Belo Horizonte. O senão ficou por conta da calda, muito doce, que prevalecia sobre o sabor do jiló.
Na reta final, dois pratos de fôlego. O cuscuz de canjiquinha com bochecha de boi era muito gostoso. Já o derradeiro ato não me agradou tanto: feijão fradinho na manteiga de garrafa, pé de porco recheado com carne de joelho, banana, coulis de azedinha. Saboroso, mas muito pesado. E não me refiro à natureza substanciosa do prato, mas ao fato de ter sido o momento do percurso em que a execução me pareceu menos delicada.
A sobremesa era uma brincadeira com a crendice que ainda faz crianças atravessarem a infância temendo a dita fatal combinação de manga com leite. Intitulada “fruto proibido”, trazia manga verde batida com leite e rapadura.
A noite me rendeu ainda meia hora de prosa com Tanea, de quem fiquei fã. É sempre bom cruzar com cozinheiros que lidam com a comida com tamanha profundidade. Sua cozinha não tem brigada, não tem aparato moderno ou louça cara, nem precisão cirúrgica na técnica. Mas tem raízes, tem sentido. Tem verdade.
Kitanda Brasil - Rua Padroeiro Santo Antônio – Tiradentes
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